Sangue e almas para meu lorde Arioch!
Stormbringer, para quem não conhece, é o nome da espada mágica de Elric, o elfo albino imperador de Melnibone (na verdade, ela é muito mais que isso, mas não quero revelar todos os segredos da história). Elric e sua espada são grandes personagens da literatura de Fantasia Pulp, e enormes influências para o hobby dos RPG (Elric é a principal inspiração da classe elfo do D&D clássico, e Stormbringer é a inspiração para as espadas mágicas inteligentes). Apesar disso, o assunto de hoje é outro: o RPG oficial da saga de Michael Moorcock lançado em 1981 pela editora Chaosium.
Chamado de Stormbringer – Fantasy Role-Playing in the Young Kingdoms, este RPG tem como base outro RPG da editora, o Runequest, porém com algumas simplificações para agilizar o jogo, e algumas modificações para deixá-lo mais apropriado ao cenário dos Young Kingdoms. O sistema de resolução de ações se resume a um teste de d%, tendo o jogador que rolar menos que determinado número (normalmente sua perícia ou múltiplo de seu atributo) para ser bem sucedido. Críticos são obtidos com rolagens muito baixas ou muito altas (acertos e falhas respectivamente). Fora isso, o jogo ainda utiliza outros dados para gerar valores para atributos, danos e outras estatísticas.
O livro vem originalmente em uma Boxed Set, acompanhado de dados, um mapa do cenário e caderno com fichas e tabelas de referências. Com cerca de 140 páginas, o jogo traz tudo que um jogador precisa para começar a se aventurar neste universo fantástico. Ele é todo em preto e branco, com poucas ilustrações, mas as poucas que contém são fenomenais em qualidade. A escrita do manual é objetiva e sem muitos floreios mas, como é característico dos jogos de RPG da época, deixa alguns detalhes um pouco mal explicados (mas nada que um pouco de bom senso e dedução da parte de um bom mestre não resolva).
O primeiro capítulo faz uma introdução não só ao conceito de RPG (muito brevemente), mas como ao cenário do jogo: o mundo de Elric. O autor fala um pouco sobre a obra de Moorcock, sobre a saga de Elric de forma bem geral (na esperança de fazer o leitor se interessar e buscar as obras originais), e faz um apanhado do cenário de campanha, falando dos diversos reinos e das principais regiões conhecidas, além de mencionar que muito do mundo permanece desconhecido, dando uma boa oportunidade para mestres mais criativos criarem regiões, povos e locais interessantes.
Em seguida, o segundo capítulo traz as regras para criação de personagens, que neste RPG é, praticamente, aleatória. A influência do D&D ainda pode ser sentida quando vemos a geração de atributos rolando-se 3d6!em ordem para Strength, Constitution, Size, Intelligence, Power, Dexterity e Charisma. Power é um atributo que mede a Sorte, a aptidão mágica e força de vontade, os outros atributos têm funções óbvias.
Após determinar os atributos do personagem, o jogador deve rolar em uma tabela para definir a origem do mesmo, que pode ser de um dos 20 reinos do cenário, inclusive Melnibone. O local de origem do personagem define muitas coisas sobre ele, inclusive suas possíveis profissões e modificadores de atributos (alguns reinos possuem claras vantagens sobre outros). Adiante, o jogador sorteia sua classe inicial (que determina suas perícias básicas, não há classes de personagens propriamente ditas), isto também é aleatório e depende da cultura do personagem. Além das opções como guerreiros, ladrões, caçadores e feiticeiros, temos coisas como fazendeiros, mercadores, pedintes e outros. No final, os personagens ainda podem ser complementados com outras perícias escolhidas pelos jogadores, mas não muitas.
Algumas coisas são interessantes de se observar na criação dos personagens. Como não era incomum na época, não havia a obsessão de se ter um sistema perfeitamente equilibrado para a criação dos mesmos. Alguns personagens começariam o jogo mais fortes que outros, mesmo que sorteassem muitas coisas em comum. No entanto, isto não é tão desastroso, porque personagens menos experientes evoluem mais rápido que aqueles mais experientes. Outra coisa é que os personagens já começam relativamente habilidosos, não como aventureiros inexperientes de 1º nível (aliás, não existe sistema de níveis no jogo).
O terceiro capítulo trata das regras de combate, dano e movimentação. Aqui tem o de costume nos jogos de RPG: distância percorrida dentro e fora de combate, sequência de combate, acertos e falhas críticas, dano, morte, traumas, dano por fontes que não são armas, modificadores de combate (vantagens estratégicas e outras coisas), etc. Algumas coisas merecem ser citadas em destaque, como o fato da defesa no jogo ser ativa (você faz testes para aparar ou esquivar-se de um ataque), o fato de que você pode melhorar na habilidade com armas se você sobreviver ao combate baseando-se na sua inteligência (você tem que obter um resultado maior que sua perícia na arma, tornando a evolução cada vez mais difícil), existência de ferimentos graves e sequelas (perda de membros, inclusive), descrição de armas e armaduras neste capítulo e algumas poucas coisas sobre combate em massa e naval.
Já que falei sobre ferimentos e melhora em habilidades, é legal deixar algumas coisas claras sobre este jogo. Existem Pontos de Vida em Stormbringer, mas eles não aumentam facilmente e tendem a ficar com o mesmo valo sempre, perto do seu atributo Constitution. Ou seja, nada de personagens com dezenas e dezenas de PVs. Combate é coisa séria e pode ser fatal, qualquer combate. Outra coisa, não há pontos de experiência neste jogo. As perícias e atributos aumentam ou diminuem no jogo devido ao seu uso, aprimoramento ou desgaste. Quanto menos experiente em uma habilidade, mais fácil (depois do aprendizado inicial) ela se aprimora. Um personagem que é um mestre espadachim, no entanto, precisa se esforçar muito mais para aprender algo novo.
Depois, o quarto capítulo fala justamente das perícias, trazendo a descrição de cada uma delas, como aprimorá-las, e exemplo de seus usos. Nada de muito especial ou diferente.
Já no capítulo seguinte, o de feitiçaria, as coisas ficam mais interessantes. No cenário de Elric, os feiticeiros não sabem fazer magias específicas propriamente ditas (comer bola de fogo, sono, etc). Lá, eles invocam entidades sobrenaturais e fazem pactos ou as dominam para que realizem tarefas para eles, permitindo efeitos fantásticos, similares às magias de outros jogos. Dependendo do valor da soma dos atributos Intelligence e Power do personagem, ele é capaz de invocar entidades de diferentes níveis de poder, começando por elementais menores e indo até os próprios Lordes do Caos. Acontece que toda invocação tem seu preço e riscos (sacrifícios a serem feitos, chance das entidades não aceitarem o acordo ou resistirem à dominação e atacar, etc). Assim, a feitiçaria não se torna algo banal e utilizável a qualquer hora. O sistema é bem interessante e até dá vontade de adaptar para outros jogos (pensando no DCC RPG e no Barbarians of Lemuria).
Adiante, no capítulo seis, o livro trata dos cultos e religiões do cenário, assim como o papel e as regras de sacerdotes dessas entidades adoradas e dos agentes que as servem. Basicamente há três tipos de religiões principais no cenário: culto aos elementais e suas energias primordiais, o culto aos Deuses da Ordem e o culto aos Lordes do Caos. A obra de Moorcock se concentra, principalmente, no eterno conflito entre o Caos e a Ordem, e como as entidades de cada lado utilizam agente no mundo para alterar o equilíbrio do conflito à seu favor. Elric é utilizado por ambas as forças em diversos momentos de suas histórias e o autor tenta reforçar esse tema não jogo também, passando a ideia de que este conflito é algo importante que deve fazer parte das narrativas do jogo.
Sacerdotes e agentes servem a estas entidades e recebem benefícios por isso. Eles fazem juramentos e pactos, recebendo amuletos “mágicos” que representam esta ligação e que lhes concedem poderes e a chance de pedir por uma intervenção divina. É claro que para isso eles devem obedecer preceitos, oferecer sacrifícios e outras coisas, além de sempre se opor às entidades opostas e seus agentes.
Alguns monstros, criaturas e animais são apresentados com suas estatísticas no capítulo sete. São apenas uma amostra das possibilidades do sistema, alguns animais e monstros únicos do cenário do jogo, assim como regras para criação de monstros próprios. O legal e que, como o universo de Moorcock assume a existência de vários planos e dimensões que podem se comunicar, você pode utilizar monstros e criaturas de diversos cenários e gêneros sem problemas. Inclusive há referências a coisas do cenário de Runequest pelo livro por causa disso.
O capítulo seguinte traz dicas e conselhos para o mestre de jogo, coisas bem simples que a maioria de nós conhecemos e alguns conselhos sobre como levar campanhas e aventuras no cenário dos Young Kingdoms. É legal que, como os personagens já começam bastante capazes, o autor até estimula um estilo de jogo mais independente, variando de personagens e locais a cada aventura (não que a tradicional longa campanha com os mesmos personagens seja desestimulada). Acompanhando o final do capítulo, o livro traz uma localidade que pode ser usada como cenário de uma aventura com alguns elementos interessantes do jogo, mas de outra forma, ela é bem simples (até demais pro meu gosto, mas há algo a se aproveitar nela).
Por fim, o apêndice do jogo traz a descrição e as estatísticas dos principais personagens da saga literária de Elric, caso o mestre queira utilizá-los durante o jogo.
Bem, em resumo, Stormbringer é um jogo característico de sua época mas com conceitos bem interessantes e que se adapta muito bem ao cenário do jogo. O sistema do jogo não é um dos mais simples mas também não é nenhum bicho de sete cabeças (é um sistema de porcentagem com algumas peculiaridades, um sistema de magias diferente e um sistema de evolução por tentativa e erro). É um jogo que vale a pena experimentar e que é considerado um clássico e um dos melhores jogos de Espada e Feitiçaria até hoje! Moorcock é um autor influente nos jogos de fantasia e um RPG no seu mundo mais conhecido não tem como ser ruim.
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