quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Sobre John Wick, Tomb of Horrors e Aventuras Prontas


Essa semana li um artigo do polêmico John Wick falando sobre o Tomb of Horrors. Este é um artigo em resposta.

Senhor John Wick,

Lamento que tenha sido seduzido pela aventura mais letal de todos os tempos a matar seu grupo, personagem por personagem, e ainda gostar disso! Lamento também que tenha brigado com seus amigos depois de seu primeiro Total Party Kill na tumba de Acererak.

Realmente Tomb of Horrors é cruel e não dá chances de salvamento com suas mortes horríveis e automáticas, por outro lado, foi escrita como uma provação e uma lição para jogadores com personagens poderosos, acima do décimo level, já convencidos da própria infalibilidade. Seu objetivo é desafiar o jogador além da ficha, além dos dados, além das probabilidades que, no level range proposto, lhes é bastante favorável. As armadilhas são superadas não só rolando dados, mas analisando a sala, testando os objetos, levando hirelings como boi de piranha, etc.

Além de colocar à prova os jogadores, porém, Tomb of Horrors é uma provação ao mestre. Ela instiga nossa veia sádica, não há dúvidas, e isso distorce um pouco nossa visão, tanto é que há vários equívocos nos seus relatos a respeito dos encontros e da estrutura da dungeon. Sua memória a respeito dela é muito mais emocional - de um garoto levado ao lado negro da força - do que racional, objetiva, de um game designer honesto. Será que você lembra que há muito tesouro livre de maldição a se resgatar lá dentro? E será que se você fosse um demi-lich sagaz como Acererak, não deixaria uma maldição sobre uma porção de seu tesouro? Sugiro que pegue sua cópia de Tomb of Horrors, que aposto que está guardada em um local seguro com muito carinho, e verifique: a aventura que você tem na cabeça é muito mais sádica do que a que está impressa ali.

"Não há nada além de morte e desgraça lá... este mapa leva ao local onde todos os meus amigos morreram mortes horríveis... este local matou todo mundo que eu amava" - avisou seu NPC a seus jogadores. Você já tinha noção disto ou é uma memória criada? A não ser que você pense que aventuras de RPG devam contar apenas histórias de vitórias e conquistas, não há problema algum com a possibilidade real de morte dos personagens dos jogadores em um local com este nome e esta fama, concorda? Além disso, ser vitorioso é muito mais gostoso quando um perigo real é vencido.

Você e seus amigos foram todos derrotados pela Tomb of Horrors. Os jogadores foram derrotados por subestimarem o perigo e terem desferido um vingativo soco no mestre em virtude do TPK. O mestre foi derrotado ao ser seduzido pelo instinto assassino da aventura e não ter, em momento algum, aproveitado o desafio em benefício da diversão de todos.

Fico feliz que sua segunda experiência com a tumba tenha sido legal. Você guiou seus amigos pela masmorra, criou jogadas de proteção onde não tinha, alertou sobre os perigos à frente, inventou até um sistema de sorte para que se salvassem em momentos críticos e assim derrotaram Acererak.

Quando li seu relato cheguei a me perguntar se você acha mesmo ela tão ruim assim: "A aventura me transformou completamente. Me fez repensar meu papel junto aos jogadores: jogar com a intenção de protegê-los foi tão mais divertido […] Tomb of Horrors foi um momento importante em minha vida enquanto GM, enquanto game designer e como amigo, e precisei da Pior Aventura Jamais Escrita para entender isto."

Foi uma boa solução para pré-adolescentes que passaram a se conhecer melhor enquanto jogadores e enquanto grupo. Você não precisou da pior aventura de todos os tempos, você precisou apenas de autoconhecimento e de entender o grupo para entender exatamente o que ia divertir vocês.

O problema é que, aparentemente, seu trauma lhe impede de dizer para você mesmo o quanto você ama a pior aventura jamais feita e, a reboque disto, deixa de aprender muitas coisas. Foi um tanto triste saber que sua terceira vez (!) na tumba, desta vez como jogador, foi na intenção de estragar a experiência de um grupo apenas para tentar absolver o pequeno John Wick e seu primeiro TPK.

Todos sabemos que pessoas com algo a provar não costumam ser muito divertidas em uma mesa, mas você foi mais longe, agiu com dolo. Assumiu o papel de ladrão para ir superando a dungeon, armadilha por armadilha, ganhando a confiança do grupo, até a famigerada esfera de aniquilação na boca do demônio - talvez a armadilha mais famosa de todo o RPG – quando resolveu incorporar aquele mestre sádico de 12 anos e influenciar o restante do grupo a morrer um a um na boca do diabo, só para poder dizer que a culpa não foi sua, mas sim do Gary Gygax e de sua aventura de merda.

Talvez tenha perdido a chance de perceber que o papel do mestre não é derrotar seus jogadores impiedosamente nem protegê-los, mas sim compor todas as vontades criativas da mesa de forma divertida para todos e, se o estilo do grupo pedir, bancar o malvado ou o anjo da guarda na condução da aventura, contanto que seja do gosto de todos. Você é livre para fazer o que for necessário para adequar a aventura ao seu grupo e seu estilo.

http://www.stefanpoag.files.wordpress.com
Tomb of Horrors pelo genial Stephan Poag, um dos ilustradores de Dungeon Crawl Classics

Os únicos responsáveis pelo soco que você levou foram seus amigos, por mais babaca que você tenha sido, por mais mortífera que possa ser a aventura e a bocarra do demônio. Lide com isso, não se sinta culpado e liberte-se. Seu artigo sobre Tomb of Horrors, revela no fundo um imenso fascínio pela obra, que persiste até hoje e vai muito além daquele encanto inicial que você, aos 12 anos, sentiu ao por as mãos naquele livro de capa verde lindamente ilustrado. Quem sabe Gygax ainda não tenha na tumba de Acererak mais uma ou duas lições a lhe ensinar?

Um abraço e bom jogo!

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E aproveitando a deixa, aqui vai:

Dicas para quem quer usar aventuras prontas


Escolha do Módulo 

Não faça como o pequeno John Wick: busque aventuras com temática, ritmo e desafios que agradem seu grupo. Se possível, mostre a eles alguma coisa e dê exemplos, caso não esteja seguro de que é aquilo que querem jogar. Isso costuma ser mais importante até do que adequação ao level do grupo.

Nivelando o Desafio 

Caso o sistema proponha qualquer parâmetro de nível, como D&D e Dungeon Crawl Classics, por exemplo, busque os módulos de nível e número de personagens adequado ao seu grupo. Caso precise de mais personagens do que o grupo dispõe, introduza NPCs para lutar ao lado do grupo - isso costuma ser mais fácil do que regular os encontros.

Para regular os encontros, alguns sistemas como o D&D 5e dão os parâmetros, aí você calcula o desafio proposto no módulo e ajusta para o nível desejado dos personagens. Caso o sistema não ofereça isto, tente entender o desafio que o autor propôs com a cena e nivele de acordo.

Um encontro com um urso pestilento, por exemplo, pode propor o seguinte jogo: ele é fácil de acertar mas demora a morrer e vai para cima dos jogadores com sua pestilência, que contamina com a proximidade. O desafio é uma corrida de dano e o objetivo é matar a criatura antes dela se aproximar, portanto fique atento às características da criatura que influenciarão tal dinâmica, ajustando de acordo com as capacidades do grupo.

Cortando Encontros e Elementos 

Às vezes a aventura como um todo é boa para o grupo mas alguns encontros ou elementos não. Não tenha medo de cortá-los do jogo. Verifique apenas se há neles alguma informação ou item vital ao resto da aventura para alocá-los em outros encontros. Atente também para o fato de que, às vezes, determinada parte é mais muito lenta ou muito paradona, mas cumpre a função de contrastar com uma cena mais nervosa ou agitada. Tente entender o ritmo proposto pelo autor pois este é um dos principais fundamentos do RPG.

O Mestre é Co-criador

Às vezes o autor não vai descrever todos os detahes de todas as cenas. Não é porque ele não mencionou marcas de queimadura em uma sala protegida por uma magia pirotécnica que você precisa se omitir a respeito. Se você achou determinada sala muito mortífera e quer dar uma dica pros jogadores, por que não acrescentar esqueletos de aventureiros ou de monstros que morreram ali? Se há uma sala cheia de ogros devorando um banquete, você pode descrever barulhos e cheiros antes mesmo do encontro chegar.

Lembre-se também de aproveitar as idéias dos jogadores na aventura. Se conseguirem resolver determinado encontro de forma mais criativa do que planejado no texto, mexa seus pauzinhos para aproveitar suas idéias. Até mesmo o desfecho da narrativa pode ser modificado além do previsto no livro, para refletir um grande jogo ou decisões desastrosas.

Feedback 

Caso seja acessível, conte ao autor da aventura suas experiências, impressões, modificações e ajustes que fez no jogo. Ele certamente vai adorar receber seu feedback e trocar idéias a respeito. Além destas, já muitas outras dicas que já foram dadas aqui no blog anteriormente. Confira!

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